domingo, 20 de abril de 2014



Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a última face das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite. Uma aragem quente banha-me a face, os cães ladram ao longe desde o escuro das quintas, fremem no ar os insectos nocturnos. Ah, o sol ilude e reconforta. Esta cadeira em que me sento, a mesa, o cinzeiro de vidro, eram objectos inertes, dominados, todos revelados às minhas mãos. Eis que os trespassa agora este fluido inicial e uma presença estremece na sua face de espectros... Mas dizer isto é tão absurdo! Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. Eu te odeio, meu irmão das palavras que já sabes um vocábulo para este alarme de vísceras e dormes depois tranquilo e me apontas a cartilha onde tudo já vinha escrito... E eu te digo que nada estava ainda escrito, porque é novo e fugaz e invenção de cada hora o que nos vibra nos ossos e nos escorre de suor quando se ergue à nossa face.

quinta-feira, 13 de março de 2014

É urgente o amor



É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

ADEUS SOYO






Amanhã termina a minha estadia no Soyo. Cheguei ao Soyo em Março de 2010 para uma viagem que chega ao seu fim. As centenas de canais que serpenteiam o Rio Zaire são testemunha da imensa felicidade que foi passar aqui estes quase quatro anos. Coincidiu este período com o nascimento do meu filho, momento maior da minha vida. Passei pelo pipeline e pelas obras de apoio social: reconstruímos as estradas do Soyo, melhoramos o aeroporto, construímos um hospital e uma escola. Fiz passeios de barco pelo incrível Rio Congo, desde a Ponta do Padrão até à Praia da Sereia, passando pelas ilhas de pescadores, que me receberam e deram, generosamente, do seu peixe para comer. Entrei em canais, perdi-me no mangue imenso, rodeado apenas pelas aves canoras e pelos cacussos lagunares. Não tenho dúvidas em afirmar que a baía de Pangui está muito perto do paraíso. Recordo com emoção a viagem ao Sumba, sempre pela margem do Rio Congo, e as três viagens entre Luanda e o Soyo por via terrestre. A primeira, decisiva, logo em Setembro de 2009. Vi a cara de espanto do policia no primeiro controlo junto à Barra do Dande, quando lhe disse, por volta da meia noite, que iria iniciar sozinho uma viagem até ao Soyo. Outras se seguiram, menos radicais pela picada imensa de 450 quilómetros passando por Ambriz, Nzeto e pelo Quinzau (a terra do elefante). Parei nas tascas à beira da estrada para comer o ginpuko, a paka, gazela, javali e pacaça, as iguarias dum povo que ficou sem a caça que aos poucos regressa. Outros tempos, guerras que ninguém entende mas que deixaram marca. Como os kiowas, povo mártir, que foram dizimados em Tomboco. As chatas passam cheias de congoleses a fronteira invisível do rio caudaloso e anunciam uma invasão silenciosa. O mangue vai desaparecendo pelo crescimento habitacional e demográfico. Os animais fogem pela pressão humana. No mercado há animais selvagens à venda. Nas lavras, cada vez mais distantes, mulheres esforçadas cultivam a ginpinda e a kisaka que hão-de levar ao mercado do Kungu-e-ngele transportadas nas traseiras de pick-ups ou em cima de camiões por vezes descontrolados. O Mpinda está nos locais emblemáticos desta cidade. Porto de saída de barcos negreiros, levando à força os braços que moviam os engenhos de Pernambuco para adoçar o leite aos europeus. A missão católica, com a sua avenida de mangueiras centenárias, apoiando um povo empobrecido, apesar do subsolo esconder riquezas imensas de petróleo e gás. Soyo cidade de breu profundo que ainda aguarda pela chama que nunca mais chega. Aprendi os rudimentos do Kisolongo e tantas vezes ouvi cantar por entre risos incontidos das senhoras vindas da lavra: “mundele kisolongo vovanga”.  Ligaram-se as plataformas offshore à fábrica que se construiu através de vários pipelines e os navios preenchem agora a imensa foz do Rio Congo e levam o Gás Liquefeito do Soyo a todo o mundo. Eu levo do Soyo memórias dum tempo bem passado e no coração o afeto de pessoas que jamais esquecerei.


KOLELE! Lotomasala ki-a-biza.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Carta a meus filhos sobre "os fuzilamentos" de Goya - Jorge de Sena


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. 
É possível, porque tudo é possível, que ele seja 
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, 
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém 
de nada haver que não seja simples e natural. 
Um mundo em que tudo seja permitido, 
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, 
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. 
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto 
o que vos interesse para viver. Tudo é possível, 
ainda quando lutemos, como devemos lutar, 
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, 
ou mais que qualquer delas uma fiel 
dedicação à honra de estar vivo. 
Um dia sabereis que mais que a humanidade 
não tem conta o número dos que pensaram assim, 
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, 
de insólito, de livre, de diferente, 
e foram sacrificados, torturados, espancados, 
e entregues hipocritamente â secular justiça, 
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.» 
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, 
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas 
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, 
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, 
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, 
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. 
Às vezes, por serem de uma raça, outras 
por serem de urna classe, expiaram todos 
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência 
de haver cometido. Mas também aconteceu 
e acontece que não foram mortos. 
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, 
aniquilando mansamente, delicadamente, 
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. 
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, 
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha 
há mais de um século e que por violenta e injusta 
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, 
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria 
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. 
Apenas um episódio, um episódio breve, 
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis) 
de ferro e de suor e sangue e algum sémen 
a caminho do mundo que vos sonho. 
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém 
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a. 
É isto o que mais importa - essa alegria. 
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto 
não é senão essa alegria que vem 
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém 
está menos vivo ou sofre ou morre 
para que um só de vós resista um pouco mais 
à morte que é de todos e virá. 
Que tudo isto sabereis serenamente, 
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, 
e sobretudo sem desapego ou indiferença, 
ardentemente espero. Tanto sangue, 
tanta dor, tanta angústia, um dia 
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - 
não hão-de ser em vão. Confesso que 
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos 
de opressão e crueldade, hesito por momentos 
e uma amargura me submerge inconsolável. 
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, 
quem ressuscita esses milhões, quem restitui 
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? 
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes 
aquele instante que não viveram, aquele objecto 
que não fruíram, aquele gesto 
de amor, que fariam «amanhã». 
E. por isso, o mesmo mundo que criemos 
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa 
que não é nossa, que nos é cedida 
para a guardarmos respeitosamente 
em memória do sangue que nos corre nas veias, 
da nossa carne que foi outra, do amor que 
outros não 
amaram porque lho roubaram. 

Noche del Amor Insomne



Noche arriba los dos con luna llena,
yo me puse a llorar y tú reías.
Tu desdén era un dios, las quejas mías
momentos y palomas en cadena.

Noche abajo los dos. Cristal de pena,
llorabas tú por hondas lejanías.
Mi dolor era un grupo de agonías
sobre tu débil corazón de arena.

La aurora nos unió sobre la cama,
las bocas puestas sobre el chorro helado
de una sangre sin fin que se derrama.

Y el sol entró por el balcón cerrado
y el coral de la vida abrió su rama
sobre mi corazón amortajado.

Federico Garcia Lorca

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A terra dos homens com gancho

Um dia bateram à minha porta e encontrei um homem com ganchos que me queria vender uma fotografia de minha casa.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Erupção



Em Madrid fazem-se os preparativos para a organização dos Jogos Olímpicos. Instigados por um chefe omnipresente, dois agentes antiterroristas iniciam uma perseguição obsessiva. Onde está Mikel Gurutz, o etarra que acaba de se evadir da prisão? Que relação entre a sua rocambolesca fuga e a organização dos Jogos?
 Getxo, país basco: quatro estudantes acabam de ser detidos. Um deles irá percorrer muitas cadeias. Pertencerá, realmente, a uma associação terrorista? Por que razão o deportam para a Venezuela?
Aparentemente, não há qualquer relação entre tudo isto e um inofensivo engenheiro, responsável pela construção do estádio olímpico. Mas, anos antes, as autoridades fecharam o jornal do seu pai, sob acusação de incentivo ao terrorismo. Que ocultará aquele encontro junto à raia portuguesa.
Baseado em casos reais da luta do povo basco, “Erupção” é um romance sobre as teias em que o Estado enreda aqueles que lutam pela libertação. Os seus personagens desfilam-nos, vítimas de processos kafkianos em que entram sem saberem como e de que não se conseguem livrar. Trata-se dum livro que abala os nossos preconceitos sobre verdade e mentira, sobre culpa e inocência, sobre bem e mal. Uma trama que surpreende e, sem pré-aviso, nos confronta com os abismos do terrorismo de Estado.
"O que surpreende em Erupção é a coragem com que João Machado pega sem tabus num tema tabu: a luta do povo basco e a forma pouco clara como o Estado espanhol a reprime. Trata-se duma obra que ganha particular atualidade, num momento em que a implosão do reino está na ordem do dia e ganha estatuto oficial" Luis Novais.